O vento frio corta uma avenida deserta. Asfalto úmido iluminado pelos postes com uma luz fria e tremeluzente. Não há nada além da via e do vento.
Cacos de vidro, cacos de uma vida quebrada contemplam os olhos da garotinha pálida.
Ela caminha com o cimento rachando a seus pés. Não há escapatória, ela tem de fazer aquele caminho.
As folhas das árvores cortando sua face, o relógio quebrado marcando o horário de ontem.
Não há mais vozes recitando conselhos inúteis ou rindo cantigas desnexas.
Ela estava longe.
Longe daquilo que não servia, distante demais para se importar com o supérfluo.
De repente ela enxergou que estava transbordando de falta. Carregada de lágrimas atirou contra o cimento gotas de desgosto. O vento congelou-as, cristalizou a tristeza em suas rachaduras.
Seguiu seus passos, corpo dolorido mas banhado de morfina.
O relógio apitando o despertador da noite passada ressoou quase que fantasmagórico cortando o silêncio gritado pelo vento.
Ah, noite passada. Suas bochechas tentaram corar quando se lembraram.. Noite passada ela tinha uma vida.
E agora estava caminhando, lutando contra a força gélida daquela avenida sem vida.
Já não tinha uma casa, e vendo agora que importância teria uma casa?
Para que servem roupas, alimento, brinquedos, vaidade..
Ou que valor há nos conhecidos perante os amigos (que também estão distantes agora)?
No cruzamento havia um caminho do meio, um túnel iluminado amarelo. Ela desceu por ele, contornou suas curvas, com a fumaça saindo pelos lábios.
Nem se lembrava das coisas que gostava de fazer, ou de como ela ocupava seu tempo. Não importava se trabalhava ou se enganava. Tudo estava parado, como se nada houvesse antes, agora e depois.
Seus olhos enxergavam ao longe, tentavam agarrar o horizonte. Concreto, via, túnel, amarelo, cansaço.
Ela se encharcou de medo. Um medo tão poderoso que mostrou como outros sentimentos egoístas que ocupavam sua mente são vazios, pequenos, amenos.
Mente torturada, o túnel se abriu em mais vento, em uma via mal iluminada.
Sabia já seu caminho, rumou à direita seguindo o som da corrente glacial. Não sentia as pontas dos dedos, seus pés hesitantes mas firmes.
Tanta coisa errada, tanta preocupação a toa, tanta perda de tempo.
Seu cérebro lhe metralhava suavemente com lembranças, ao mesmo tempo ela não pensava em nada.
Já estava flutuando, a estrada fazia uma curva acentuada à direita. Ela parou na encosta e sentiu a brisa cortante penetrar sua pele.
Garotinha pálida, seus cabelos desarrumados ao vento batiam-lhe nos ombros.
Ela deu um pequeno pulo para enxergar através da mureta que delimitava a estrada.
Seus olhos procuravam, seu coração batia forte e parava, sua mente lia um livro que ainda não havia sido terminado.
Amortecida, concentrou sua força em um último pulo. Apoiando os pés no cascalho da via, saiu do chão e agarrou-se na beirada.
E, sem nada, percebeu como o nada sempre foi tudo e como o tudo sempre foi nada.
Agora algumas gotas d'água caíam em seu rosto, ela levantou-se e apreciou a floresta em desfiladeiro. Sua respiração era profunda. Inspira, .................................expira.
Cacos de vidro, cacos de uma vida quebrada contemplam os olhos da garotinha pálida.
Os cacos em seus pés formavam uma trilha rumo ao desfiladeiro.
A roda do carro ainda estava girando quando seus olhos a encontraram. Aquele carro preto retorcido em meio às árvores formava um vão na floresta. Rodas para cima, farol ainda ligado iluminando a copa de um pinheiro, breu em volta.
Seguiu as marcas de pneu no asfalto e encontrou o final de seu livro.
Ali estava a sua vida, garotinha. Batida.
....
Agora ela pôde ver a o que tudo se resume.
E o porquê de tanto frio.
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