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"As Crônicas de um Casaco Usado"



Era uma quinta-feira do final do mês de Maio, o outono caía junto com as folhas
avermelhadas das árvores e dava lugar ao inverno e à neblina.
As ruas já estavam dominadas pela névoa enquanto eu voltava lentamente para meu apartamento, era pouco mais de dez da noite e, novamente, estaria mais cedo em casa justamente para compartilhar meu fim de noite com uma garrafa de Wisky BlackStone.

Estranhos eram meus pensamentos, estranha era a forma como as estrelas brilhavam para mim. Talvez com um pouco de álcool conseguiria compreender o rumo para o qual minha vida estava indo. A felicidade estampada em meu sorriso, mas a tristeza tatuada em meus olhos. Me sentei na beirada da cama com meu copo cheio de sonhos perdidos, estava sozinha, só acompanhada pelo ritmo da banda anos 80 que tocavano rádio.

Estava aliviada por ter de volta minha esposa, a qual eu perdera por algumas semanas por motivos desnecessários. Agora novamente podíamos ficar
juntas e o céu parecia ter ficado mais anil de uma hora para outra! No meio de
solos de baixo e batidas de surdo na bateria, um telefone toca. Era ela, com o
tom de voz mais feliz que eu ultimamente ouvira. Suas espectativas eram tantas,
e antes tão sonhadas por mim, mas no momento o cansaço me dominava e uma caverna debaixo da terra não era tão desprezível assim.

Queria me ver, iria para uma festa e insistia por minha companhia. Ao final da ligação deixei-me despencar na cama, estava com uma generalizada apatia social. Mas um porém me despertou, ela iria acompanhada por uma amiga desconhecida e, na minha opinião, potencialmente perigosa. Aumentei o som e levei-me ao chuveiro para renovar os ânimos. A água morna escorria por entre minhas tristezas e as levava embora ralo àbaixo. Já estava fortalecida o bastante para suportar o que me aguardava.

Ao me fitar no espelho alguma coisa em meus olhos dizia para eu não sair de casa naquele dia, que algo ruim iria acontecer, e nesse momento meu crucifixo que sempre acompanhava meu pescoço caiu ao chão. Guardei-o em minha caixinha de jóias e vesti meu casaco de couro..

-Bobagem, esta só será mais uma noite com muita música e alguma bebida ao lado da minha menina.

Eis que neste momento com o barulho da porta sendo aberta, chega minha companheira de apartamento. Essa era uma época em que além de companheira
de apartamento ela era, também, minha companheira de noites!
Somente cinco palavras a convenceram a ir comigo de última hora e atrasar quase duas horas para chegar a meu destino. O lugar combinado seria um bar próximo à casa noturna, onde supostamente estaria minha amada.
Porém, as mesinhas na esquina foram mais chamativas, e logo sentamos, fizemos amizade e por alí mesmo ficamos!

Supostamente, já era quase meia noite quando nos dirigimos para a porta do estabelecimento, já meio alteradas pelas cervejas, e adentramos no local.
As luzes brilhavam irradiantes, haviam pessoas dançando ao som de MPB e pessoas
sentadas nos sofás confortavelmente encostados nas paredes.

- Uma caipirinha de melancia, por favor.

Esta foi a pedida de ambas.
Uma malícia de repente se desprendeu de meu olhar. O olhar de Ana, a companheira de noites, se fixou no meu com a mesma malícia. Foi esse segundo que sentenciou minha noite, ou, que sentenciou minha vida..
Me dirigi para o sofá ao lado da porta, onde havia uma menina loura trajando um vestido onçeado, sapatos negros e uma tiara combinando.
Não me importei com Ana, só soltei uma risadinha para ela e logo me sentei ao
lado da garota. Em pouco menos de um minuto estávamos conversando algo que não me recordo e sua amiga, desconhecida agora para mim, conversava com Ana.

A música ecoava por nossos ouvidos, o ambiente se movia como na iminência de explodir, o álcool afetava meu cérebro e a conversa fluía como nunca! Sorrisos, isso resume o que ocorria, risadas ecoantes que ninguém ouvia, e passos de dança ridículos aos olhos de sóbrios. Eu me sentia solta, só acompanhada de uma querida amiga que me acompanhava em minha alegria instantânea!

Alegria esta que despencou em minha cabeça no momento em que me virei para a entrada do bar e lá avistei-a, a entrar e sorrir para mim, chegando com sua amiga que na verdade não era nada potencialmente perigosa.
Ela não se parecia tão arrumada, usava as roupas do dia-a-dia, uma calça jeans e uma camisa pólo, estava acompanhada de duas amigas que me cumprimentaram com grandes sorrisos, chegou até mim com os olhos apaixonados e deu-me um beijo, o qual retribuí timidamente.

Fui tirada de um lugar e colocada em outro. Uma pista enorme e colorida onde as caixas de som tremiam o chão com a batida forte. Estava confusa, ligeiramente contrariada e, o pior de tudo, inconsciente de meus limites.

-Opa, moço, me dá uma caipirinha de melancia caaaaprichada!

E esta deve ter sido a quinta vez, ou não sei se já perdi as contas.
Fui ao banheiro e fitei-me no espelho. Vestia um rosto totalmente disforme, meus olhos carregavam pura malandragem. Lavei-o para ver se a máscara caía, mas nada aconteceu, meus pensamentos estavam disformes.

Cambaleei de volta à ela e dei-lhe um beijo demorado, abraçei-a como que em despedida, disse-lhe que a amava e estava feliz por tê-la de volta. Com tantas coisas
girando em torno de nós, por um momento tudo parou e somente ela existia em meio
às luzes. Olhei seus olhos profundos e sinceros, uma visão embaçada e tremida do
meu nervo óptico, seu sorriso batia em mim e eu rebatia um leve movimentar de
lábios. E foi nesse momento que aconteceu..

- Preciso encontrar a Ana, pegue meu casaco que eu já volto, quero ela por perto.
- Deixe-a dançar sozinha, ela deve estar por aí com alguém, fique aqui comigo!
- Não, vou buscá-la, espere aqui.

E deixei meu casaco em seus braços, no exato lugar em que eu deveria ter ficado.
As pessoas estavam escuras, era um amontoado de pernas e braços rodopiando, rostos vermelhos, mãos roxas, pés azuis, bocas amarelas.
Monstros feitos de arco-íris.
Procurei em todos os cantos, mas foi justamente no meio que eu encontrei, e encontrei todo mundo de uma só vez sem perceber.
Avistei Ana perto de uma caixa de som. Começei a andar em direção ao meu objetivo para voltar logo para o lado de quem me aguardava, quando como que maquiavelicamente, começou a tocar uma de minhas músicas preferidas. Esqueci de tudo, só a batida e os efeitos eletrônicos em meus ouvidos. Começei a dançar, pular, me agitar. Era como se a música estivesse saindo de dentro de meu corpo e todos estivessem ouvindo.

As luzes giravam e a pista tremia, ergui meus olhos para cima. Estava lá, dançando em cima de um degrau, a garota do vestido onçeado. Parei no meio do turbilhão de dançarinos e a observei por uns cinco segundos que se passaram como em câmera lenta em minha cabeça. Ví seu jeito de dançar agitando os cabelos e, sem pensar, guiada por uma força desconhecida semelhante a um impulso elétrico, aproximei-me. Tudo se passou em menos de um segundo, rendi minhas forças e a beijei.
Nesta hora sim, tudo parou. Até mesmo a música perdia o sentido e foi como se todas as pessoas estivessem olhando para mim.

Porque quem estava atrás observando tudo, em choque, era ela.. Queria ver até que ponto eu chegava, e como não cheguei a nenhum ponto digno, se achegou e pegou meus cabelos fazendo-me olhar para ela. Seus olhos eram uma mistura de raiva e decepção com uma vontade imensa de não acreditar no que estava vendo. Ela sentia dor enquanto eu não entendia o que estava acontecendo, não entendia por que não podia continuar a me divertir com a garota onçeada.

- Espero que o beijo dela seja melhor do que o meu, porque o meu você não terá mais.

Neguei seu olhar e continuei na rendição perdida enquanto ela se perdia em meio à multidão.Passaram-se somente mais cinco segundos, e eu me peguei parada a olhar para uma desconhecida que somente era um pouco simpática e bem bonita ,mas que mesmo assim não era o lugar onde eu deveria estar.

- O que eu acabei de fazer?

Foi como se todo o álcool tivesse se evaporado e eu estivesse terrivelmente sóbria. Corri por todos os ambientes atrás dela, a menina que eu amava, mas que de alguma forma havia me perdido, havia assassinado a mim mesma. Ela estava por alí, ao lado de minha amiga e de suas amigas. E eu estava sozinha com a maldita negação e o peso de toneladas de erros em minha mente. Sua forma indiferente de agir não escondia que seus olhos estavam se desmanchando, e mesmo que os meus suplicassem algum diálogo eu não tinha o que falar. Não ousaria falar alguma coisa, não tinha forças.

Meu casaco ainda estava no mesmo lugar de antes, mas eu.. ah, agora eu estava tão distante de quando colocara-o alí.
E foi assim que eu resolvi pegar o caminho de meu apartamento para desmaiar em meus lençóis e tentar entender sequer metade do que houvera naquela noite. O caminho de volta nunca tinha sido tão torturante, minha cabeça doía e o silêncio sufocava minha garganta. Os olhos de reprovação de Ana entravam como facas nos meus.
Fiz do silêncio minha explosão, coloquei meu casaco para amenizar o frio e caminhei pelas ruas cheias de névoa.

Comentários

  1. " A felicidade estampada em meu sorriso, mas a tristeza tatuada em meus olhos "

    as vezes um pouco de tristeza esconde o tamanho da felicidade em que agente guarda dentro de si :)

    esse texto é lindo,de verdade!

    tá adicionada aqui também Vih
    beiijão!

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